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quinta-feira, 18 de março de 2010

"O Bom Samaritano” ou “ O Bom Travesti" - Rubem Alves

E perguntaram a Jesus: "Quem é o meu próximo?" E ele lhes contou a seguinte parábola:

Voltava para sua casa, de madrugada, caminhando por uma rua escura, um garçom que trabalhara até tarde num restaurante. Ia cansado e triste. A vida de garçom é muito dura, trabalha-se muito e ganha-se pouco. Naquela mesma rua dois assaltantes estavam de tocaia, à espera de uma vítima. Vendo o homem assim tão indefeso saltaram sobre ele com armas na mão e disseram: "Vá passando a carteira". O garçom não resistiu. Deu-lhes a carteira. Mas o dinheiro era pouco e por isso, por ter tão pouco dinheiro na carteira, os assaltantes o espancaram brutalmente, deixando-o desacordado no chão.

Às primeiras horas da manhã passava por aquela mesma rua um padre no seu carro, a caminho da igreja onde celebraria a missa. Vendo aquele homem caído, ele se compadeceu, parou o caro, foi até ele e o consolou com palavras religiosas: "Meu irmão, é assim mesmo. Esse mundo é um vale de lágrimas. Mas console-se: Jesus Cristo sofreu mais que você." Ditas estas palavras ele o benzeu com o sinal da cruz e fez-lhe um gesto sacerdotal de absolvição de pecados: "Ego te absolvo..." Levantou-se então, voltou para o carro e guiou para a missa, feliz por ter consolado aquele homem com as palavras da religião.

Passados alguns minutos, passava por aquela mesma rua um pastor evangélico, a caminho da sua igreja, onde iria dirigir uma reunião de oração matutina. Vendo o homem caído, que nesse momento se mexia e gemia, parou o seu carro, desceu, foi até ele e lhe perguntou, baixinho: "Você já tem Cristo no seu coração? Isso que lhe aconteceu foi enviado por Deus! Tudo o que acontece é pela vontade de Deus! Você não vai à igreja. Pois, por meio dessa provação, Deus o está chamando ao arrependimento. Sem Cristo no coração sua alma irá para o inferno. Arrependa-se dos seus pecados. Aceite Cristo como seu salvador e seus problemas serão resolvidos!" O homem gemeu mais uma vez e o pastor interpretou o seu gemido como a aceitação do Cristo no coração. Disse, então, "aleluia!" e voltou para o carro feliz por Deus lhe ter permitido salvar mais uma alma.

Uma hora depois passava por aquela rua um líder espírita que, vendo o homem caído, aproximou-se dele e lhe disse: "Isso que lhe aconteceu não aconteceu por acidente. Nada acontece por acidente. A vida humana é regida pela lei do karma: as dívidas que se contraem numa encarnação têm de ser pagas na outra. Você está pagando por algo que você fez numa encarnação passada. Pode ser, mesmo, que você tenha feito a alguém aquilo que os ladrões lhe fizeram. Mas agora sua dívida está paga. Seja, portanto, agradecido aos ladrões: eles lhe fizeram um bem. Seu espírito está agora livre dessa dívida e você poderá continuar a evoluir." Colocou suas mãos na cabeça do ferido, deu-lhe um passe, levantou-se, voltou para o carro, maravilhado da justiça da lei do karma.

O sol já ia alto quanto por ali passou um travesti, cabelo louro, brincos nas orelhas, pulseiras nos braços, boca pintada de batom. Vendo o homem caído, parou sua motocicleta, foi até ele e sem dizer uma única palavra tomou-o nos seus braços, colocou-o na motocicleta e o levou para o pronto socorro de um hospital, entregando-o aos cuidados médicos. E enquanto os médicos e enfermeiras estavam distraídos, tirou do seu próprio bolso todo o dinheiro que tinha e o colocou no bolso do homem ferido.

Terminada a estória, Jesus se voltou para seus ouvintes. Eles o olhavam com ódio. Jesus os olhou com amor e lhes perguntou: "Quem foi o próximo do homem ferido?"

Rubem Alves

Livre Arbítrio?

Livre arbítrio seria em linhas gerais o direito de escolha, que supostamente, todo ser humano seria dotado. Tal direito lhe daria o poder de efetuar suas próprias escolhas, e dessa forma, se responsabilizar por suas atitudes e por tudo o que tais atitudes trariam como conseqüências. Entende-se dessa forma que se temos tal livre arbítrio, podemos então fazer nossas escolhas livremente.

Gostaria de levantar alguns questionamentos sobre nossa visão geral no que tange as escolhas do ser humano, creio eu que não exista ser humano dotado de total livre arbítrio, pois dentro de uma sociedade onde existem regras e tais regras normalmente são coercitivas para aqueles que as desobedecem, podemos compreender então que necessariamente dentro de uma sociedade não exista uma individualidade suprema, pois de outra forma estaríamos beirando o caos, nenhuma sociedade sobreviveria se os indivíduos nela contidos não respeitassem regras gerais, tais regras estabelecidas por um estado ou por algo que podemos chamar de "consciência coletiva", de qualquer forma tais regras existentes em todas as sociedades, impedem que possamos exercer uma liberdade integral.

Vale ressaltar também que dentro de nossa sociedade capitalista normalmente nossas escolhas não são simplesmente ditadas por nossas vontades, mas sim por fatores externos que influenciam em nossas escolhas, um bom exemplo disso é que normalmente não escolhemos nossas profissões de acordo com aquilo que nos proporciona prazer, mas de acordo com a rentabilidade que tal trabalho irá nos render. O que novamente nos leva a um questionamento se realmente existe tal liberdade de escolha.

Dentro dos parâmetros cristãos o livre arbítrio teria uma conotação ligada a escolha por um caminho voltado a espiritualidade, ou seja, o livre arbítrio seria uma nomenclatura utilizada para explicar que todo ser humano pode escolher seguir ou não o cristianismo. Colocando sobre os ombros do homem a responsabilidade de seu futuro pós-morte física. Desejo agora levantar alguns questionamentos no que tange isso que chamam de livre arbítrio dentro da tradição cristã, o livre arbítrio nos remete ao pensamento de real liberdade de escolha, contudo tal liberdade de escolha, lembrando que tal liberdade está ligada a escolha do caminho cristão, está delimitada da seguinte maneira: temos a liberdade de escolhermos se seguiremos ou não a doutrina cristã, mas caso isto não ocorra, estaremos fatalmente condenados ao inferno, ou seja, temos a liberdade de escolher, mas se desejarmos escolher não seguir os fundamentos convencionais do cristianismo estaremos fadados ao fogo eterno. Não consigo conceber que isso seja realmente liberdade, gostaria de frisar também que nem todas as linhas de pensamento cristãs crêem no livre arbítrio, que na real verdade é um “livre” arbítrio um tanto quanto fictício, pois tal liberdade é ditada dentro do medo da condenação eterna, o que acaba não se tornando uma liberdade verdadeira, e sim uma escolha feita através do medo e não através de nossa própria vontade, o que torna o livre arbítrio uma falácia.

Seguindo a linha argumentativa acima introduzida, gostaria de pincelar mais alguns fatores que tornam o livre arbítrio uma doutrina, no mínimo, questionável. O que dizer também de pessoas que nascem fadadas a pobreza, como por exemplo, crianças que nascem nas favelas controladas por traficantes, que encontram nas drogas e no crime organizado uma saída inevitável, há crianças dentro de tais realidades que não tem escolha, ou melhor, não possuem maturidade suficiente para ter escolhas corretas dentro do cenário social que estão expostas, o que acaba novamente demonstrando que existem muitas pessoas que simplesmente não possuíram chance de obter escolhas corretas. Tais exemplos nos levam a uma profunda reflexão sobre nossa forma de ver a doutrina cristã convencional.

Minha grande reflexão dentro deste texto é a dificuldade que temos de enquadrar tais casos dentro do nosso pensar convencional, o destino daqueles que não tiveram oportunidades ou que foram induzidos por falta de alicerce social ao crime e a atos que fogem a regra geral, socialmente aceita. A doutrina do livre arbítrio nos da margem a muitos questionamentos e a muitas reflexões. Difícil conceber dentro de tantas particularidades que remontam vidas totalmente diferentes que exista uma resposta absoluta, que consiga dar um ponto final a dúvidas como estas levantadas no decorrer deste texto, a facilidade que temos de lançar pessoas no fogo eterno é no mínimo perturbadora. Tais elucubrações não trazem axiomas, mas nos levam a profundas reflexões sobre nossa forma convencional de enxergar a liberdade de escolha.

quarta-feira, 17 de março de 2010

Salvação

Salvação é uma palavra que com certeza traz uma abrangência enorme dentro de seu significado. Pois imagino que não haja ser humano que dentro de sua existência nunca precisou de tal termo para uma resolução de um problema, quem dentro de sã consciência dirá que em nenhum momento de sua vida tenha necessitado de salvação.

Salvação nos remete a uma necessidade, aquele que assume precisar de salvação está na verdade assumindo limitações, o que implica que tal palavra também nos leva ao encontro de nossas impossibilidades. Salvação nos indica algo externo, uma força que venha de fora para uma resolução interna, uma provável solução para que nossas aparentes limitações temporárias se tornem em algo alcançável. Salvação nos faz relembrar de nossos heróis, do imaginário infantil, onde resoluções se encontram em simples invocações de poderes supremos, imaginário este que não remonta a realidade, pois na realidade nossas limitações não são facilmente vencidas através de palavras mágicas ou de encantamentos quebrados, o beijo do príncipe não vence o sono eterno dentro do mundo que não é pintado nas cores da ilusão.

Salvação palavra que nos traz um prazer imenso, principalmente quando ligada a alguma situação de nossas vidas na qual ela se fez muito necessária. Tal palavra é com certeza a procura incansável da humanidade. Quando olho para a humanidade, como um todo, e vejo nossas maldades, nossas ganâncias, nossa intolerância, nosso preconceito, nossa falta de amor, consigo visualizar claramente nossa necessidade de salvação, a necessidade de sermos salvos de nós mesmos, essa era a salvação pregada por Cristo, à salvação do homem de suas próprias misérias, de suas próprias discrepâncias e de sua própria limitação, salvação de uma visão egoísta, salvação da nossa alma, pois que há de mais importante no homem do que sua alma, aquilo que é sua essência verdadeira, o que está por trás do que vestimos e de nossa aparência passageira. Deus quando caminhou no meio de sua criação não intentou fundar mais uma religião, Ele trazia salvação, trazia o desligamento do passageiro e a ligação com o eterno, libertação de nossas mentes, e quando conseguimos compreender isto do fundo de nossas almas conseguimos assumir a necessidade eminente de algo externo, que possa nos trazer auxilio para nossas limitações, é neste momento que nossa racionalidade já não consegue conceber caminhos que possam transpassar nossas barreiras, é nessa hora, exatamente neste instante, onde nos encontramos com aquilo que chamamos de espiritual, fé, esperança que nos faz transpassar as cadeias que nos prendem a esta pueril dimensão, visão que alcança o invisível e que nos mostra além do mundo material, que nossos olhos humanos não conseguem deslumbrar, fé, força imaterial que nos auxilia a sair do finito, poder irracional que consegue fazer o eterno se tornar palpável, que faz a impossibilidade se tornar possibilidade.

Vã é a tentativa humana de se desprender de sua própria natureza sem o auxilio de algo maior, vã, pois dentro de suas limitações não pode se livrar de si mesmo sem uma força superior, salvação nos faz entender nossa real situação, nos faz lembrar nossa humanidade e de nossas misérias, salvação é a compreensão do encontro com o espiritual, a compreensão da necessidade daquilo que vai além de nosso entendimento natural, compreensão do mundo que nossa razão não pode conceber, que somente através da fé, este poder que está acima da racionalidade, que é a única via ao eterno, podemos encontrar refúgio de nossas misérias e através dela a verdadeira SALVAÇÃO.

quinta-feira, 11 de março de 2010

Jesus o anti-herói


O sermão da montanha, talvez a exposição mais conhecida de Jesus Cristo, nos traz um paradoxo muito interessante a respeito de nossa existência, algo que talvez venha contradizer de forma brutal a sociedade e a cultura que tem ditado nossas preferências.

Em suma o homem bem aventurado citado por Cristo é uma figura totalmente fora dos padrões estipulados por nossa sociedade e nossa cultura, tal homem de forma alguma, dentro de nossos padrões, poderia ser um modelo de “homem feliz”.

O nosso bem aventurado, e quando digo nosso estou me referindo ao modelo criado em nossa sociedade, não chora, pois chorar demonstra fraqueza. Nosso bem aventurado não é pobre de espírito e nem mesmo está preocupado com seu espírito, pois todas as suas metas e seus objetivos estão ligados ao mundo natural, ele está acima do espiritual, pobre, mesmo que seja de espírito não está dentro dos seus ideais, nosso herói está acima da moral.

Nosso bem aventurado não é manso, muito pelo contrário, passa por cima de tudo e de todos que estão em seu caminho, não é pacificador, pois para ele a paz é para os fracos, aqueles que não suportam a guerra, para ele, a guerra é a eliminação daqueles que atrasam o progresso, o mundo seleciona os melhores, é a evolução, a seleção natural moderna.

Nosso bem aventurado ao contrário do citado por Jesus não está esperando uma recompensa vindoura, tudo que ele faz visa o ganho imediato, sua vida é movida por aquilo que se pode ver e sentir, este é seu mundo, um mundo onde tudo é ditado pelo lucro, não se observa o que somos e sim o que temos, ou seja, somos o que temos, e se somos o que temos a ordem é consumir.

Nosso bem aventurado possui sua própria justiça, a justiça do ganho, tudo vale desde que seja para a finalidade do lucro, o nosso herói não pode dar lugar a fraqueza e a irracionalidade da fé, ele não depende de Deus, pois, ele mesmo tornou-se seu próprio deus.

O bem aventurado de Cristo é o anti-herói de nosso tempo, seu altruísmo cheira mal perante o reino do capital, nosso mundo não aceita o homem do evangelho, pois este e sua fé não trazem progresso e benefício a nossa sociedade. Há aqui um paradoxo entre nosso ideal e a representação da felicidade feita por Cristo em sua exposição. Compreendemos então que o bem aventurado de Jesus, não é o nosso “homem de sucesso”, mas sim o fracassado de nossos dias. O fracasso então se torna a vitória, e a vitória se torna o fracasso, a vida se torna a morte e a morte se torna vida. Difícil entender tal paradoxo. Ao contrário do que dizem muitos cristãos o ensinamento de seu precursor está cheio de valores que não são compreendidos de forma simplória.

Ao que parece Cristo não estava preocupado com as privações que a vida daqueles que o seguiriam iria lhes proporcionar, seus ensinamentos tinham uma visão muito maior do mundo, sua visão parecia ir além da barreira do tempo, pois o tempo é delimitado pelo natural, para Jesus o tempo não parecia ser algo linear, ao que parece o “Homem-Deus” já vivia a eternidade mesmo estando entre nós, pois somente entendendo o tempo como eterno conseguimos compreender o desprendimento daquilo que nos proporciona tanto prazer, Cristo já vivia o eterno, para ele não existe o passageiro, pois o tempo da forma como o compreendemos já não existia. As puerilidades que nos prendem a esta vida não fazem parte do eterno e do infinito. Cristo já compreendia o que é não pertencer ao tempo, e seu ideal era totalmente distinto ao natural, sua compreensão da existência estava totalmente fora dos moldes do finito.

Não há como compreender o sermão da montanha tendo em vista a vida natural, não há como compreender Cristo se não nos desprendermos de padrões criados em nossa sociedade, não há como compreender tais ensinamentos se não nos desprovermos de nossa racionalidade terrena, para então, penetrar no imaterial, no infinito e desconhecido que somente a fé pode proporcionar, onde o herói se torna o anti-herói e o anti-herói se torna o verdadeiro Herói.